Por Verônica Pragana/ASACom*
Ontem, 15 de agosto de 2019, em plena fase da Lua Cheia, que representa uma das dimensões do feminino e rege as águas, elemento que proporciona a vida, 100 mil mulheres do campo, das florestas e das águas ocuparam uma das principais avenidas de Brasília, que leva às sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Seus corpos, com os quais defendem a biodiversidade, as águas, as florestas e seus territórios, foram vistos na capital federal e em todo mundo pela Internet.
Juntas, marchando, as mulheres viraram um só corpo, uma só voz que ecoou com força e projeção no centro do poder político do Brasil. A imagem deste corpo único foi simbolizado, ontem, como um rio. Aquelas 100 mil mulheres tinham se transformado em um ser gigante, poderosa e destemida, que fluía com rapidez e determinação nos sete quilômetros que separavam o lugar onde estavam concentradas, no Parque da Cidade Sarah Kubitschek, da Esplanada dos Ministérios.
“As mulheres quando se juntam, do campo e da cidade, são como as águas”, afirma Dani Portela, advogada e historiadora pernambucana durante a Marcha. “Quando a gente se junta, a gente ganha volume, força, mas a gente se espalha. Mulheres do Brasil inteiro, do campo e da cidade, vindo até Brasília marchar. E, quando marcham, movimentam as estruturas de uma sociedade patriarcal. As mulheres, quando marcham juntas, ocupam os lugares da política, os lugares de decisão, os lugares de fala. As mulheres, quando se juntam, lutam por todos os seus direitos. E as mulheres, quando se juntam, mudam os rumos da história de um país”.
Irmanadas
Junto às camponesas, marcharam também mulheres indígenas que ocupavam Brasília desde domingo e
eram 3 mil corpos e espíritos femininos, de 113 etnias diferentes, que vieram de todos os estados do Brasil defender seus territórios sagrados. “É um lindo, forte e potente encontro nosso com a Marcha das Margaridas”, anunciou Sônica Guajajara na solenidade especial de abertura da mobilização, realizada na Câmara dos Deputados na manhã do dia 13. “Selamos este pacto quando Bolsonaro disse que não haveria nenhum centímetro a mais de terras demarcadas. Neste momento, ele chamou nós mulheres indígenas para a guerra porque não aguentamos mais ser violentadas. Enquanto ferirem a nossa existência, seremos resistência”.
“Os nossos corpos, aqui em Brasília hoje, irmanados com vários corpos de várias mulheres e de vários territórios, vieram para alterar a estrutura. Dizer não a essa política que desmonta todos os processos que fizemos a duras penas e muitas lutas, de muitos anos”, afirma Leninha Alves, deputada estadual de Minas Gerais, que construiu sua trajetória política na sociedade civil, defendendo os direitos das populações tradicionais do Norte do estado. E lembra que a irmandade das mulheres é global: “Estamos irmanadas com mulheres do mundo inteiro, de várias partes deste planeta todo, que lutam por dignidade, por vida e cidadania.
Uma Margarida de sotaque baiano, Célia Firmo, da ONG MOC que atua na região sisaleira do estado, assegura que todas vieram aqui “para mostrar que este país precisa respeitar as mulheres. Nenhum direito a menos para as mulheres, especialmente, para as mulheres do Semiárido brasileiro. Precisamos de políticas públicas. Precisamos que as políticas públicas sejam ampliadas e não retiradas.”
Auto-organizadas e mobilizadas nos territórios – Graciete Santos, da coordenação da ASA Brasil e da organização feminista Casa da Mulher do Nordeste, avalia que a sexta edição da Marcha demonstra a capacidade da auto-organização das mulheres na sua diversidade, seja as mulheres do campo, das águas, das cidades. “Conseguimos chegar aqui de uma maneira muito estruturada, muito fortalecida a despeito de todo este contexto deste atual governo da fragilização dos movimentos sociais, das organizações de mulheres e feministas, em especial.”
Para ela, a Marcha demonstra também outra capacidade das mulheres: “Não só de se contrapor, mas de sermos propositivas também. A plataforma da Marcha traz uma construção de várias temáticas que, se a gente for olhar para as outras Marchas, percebemos sua ampliação no sentido de trazer um feminismo mais plural, trazendo uma luta da agroecologia, trazendo a luta antirracista”.
Na plataforma de proposições construída de forma coletiva com participação de mulheres de todas as regiões do Brasil, há propostas distribuídas em 10 eixos que contemplam a garantia de direitos em dimensões que vão desde o acesso à terra, água e território à autonomia e liberdade das mulheres sobre seu corpo e sexualidade, passando pela defesa da democracia e fortalecimento da sua participação política.
Outra potência desta Marcha é que a mobilização não se dá apenas na esfera nacional. O que aconteceu em Brasília, ontem, é uma expressão das mobilizações territoriais que as mulheres realizam no país. “A Marcha cumpre o papel de mobilizar nos territórios, demonstra que a nossa força está nos territórios. É lá que nós fazemos a resistência. É que nós fazemos a nossa incidência. E é lá também que a gente fortalece a nossa existência como mulheres plurais, nordestinas, de vários cantos do Brasil e diferentes identidades”, pontua Graciete.
Quatro Margaridas
As indígenas Jucilene Tukduwy Rikbatsa,41 anos, de Juína, Mato Grosso, e Antônia Paté, 36 anos, de José Boiteux, em Santa Catarina, se encontraram segunda-feira (13), um dia antes da Marcha das Margaridas. Enquanto partilhavam a tinta de jenipapo para a pintura corporal, numa conversa rápida, as duas foram percebendo o quanto suas lutas são comuns, apesar de estarem em territórios tão distantes.
Jucilene Tukduwy Rikbatsa e seu povo lutam contra a construção de uma hidrelétrica em suas terras. Antônia Paté lamenta todas as perdas que seu povo já sofreu desde a inundação de seu território na cheia de 2014 provocada por uma barragem. “Nós não podemos desistir de lutar por nossos direitos. Estamos buscando justiça. E acreditamos que aqui na Marcha nos somamos e nos fortalecemos. Daqui o Brasil inteiro pode ouvir nosso clamor”, ressalta Antônia.
“As pessoas não percebem o quanto nossos rios, nossas matas e nossas terras são importantes para nós. É deles que retiramos nossos alimentos e os produtos que fazemos nossos artesanatos. Por isso estamos aqui, para não deixar que nossas vidas sejam destruídas junto com a nossa mãe Terra”, acrescenta Jucilene.
Para a camponesa Luzmara de Oliveira, 52 anos, moradora do município de Pimenta Bueno, em Rondônia, a Marcha também representa a oportunidade de seu grito por justiça ecoar nas ruas da capital federal. Ela carrega no peito a angústia por ter sido arrancada do direito de permanecer na terra que ocupava por 12 anos.
“Eles destruíram tudo que a gente tinha. Passaram o trator em cima das nossas hortas, lavoura, casa, mataram nossos animais. E o que não conseguiram destruir eles jogaram veneno para matar. Até os postes do Programa Luz Para Todos, que conseguimos com tanta luta, eles arrancaram”, lamenta.
Ela conta que 92 famílias ocupavam 10 alqueires. Desde o despejo ocorrido em 2017, passaram a viver com menos de um alqueire de terra. “Como vamos produzir alimento saudável, sem veneno, se não temos terra para plantar? Nossos políticos não podem criar leis sem conhecer nossa realidade. Eles precisam sair do conforto dos seus escritórios e ver o que realmente precisamos. Por isso seguimos marchando. Por isso estou aqui em Brasília participando da Marcha das Margaridas, porque eu acredito que seja possível mudar”.
De São José do Egito, em Pernambuco, vieram 15 camponesas para a Marcha das Margaridas. Uma delas é dona Fátima Siqueira, 53 anos, agricultora agroecológica que está vendo as políticas públicas que aumentaram a qualidade de vida de sua familias como de tantas outras do Brasil e do Semiárido se esfacelarem.
Antes, ela vendia os produtos de seu quintal e roçado, beneficiados ou in natura, para os programas públicos de compra de alimentos. Hoje, vê este canal de comercialização fechar. “No tempo de Lula, a gente comprou TV, moto, mais terra, meu filho se formou em Direito numa faculdade do Sertão da Paraíba porque acessou o Fies e o Prouni. Agora, está vendendo os freezers que comprou anos atrás por falta de uso devido à diminuição nas vendas e na produção. “Vale a pena vir, tanto que a gente incentiva outras mulheres. Temos que fazer isso. Se ficar caladas, acabou. Hoje, temos que gritar e espernear”, assegura ela que faz parte de várias associações no município e na sua comunidade, como a Associação da Feira Agroecológica de São José do Egito que está completando 18 anos, do Banco Comunitário das Sementes da Fartura, da sua comunidade e também da Comissão Municipal da Articulação Semiárido.
Dever cumprido
Foi assim que Graciete definiu a sensação que estava sentindo e que percebeu em tantas Margaridas de outros estados e regiões. “Tem este sentimento de dever cumprido, mas a Marcha não termina em si. Ela é um processo de construção. Nós vamos avançar mais, afirmando sempre que estamos vivas, que estamos na luta e que a gente não vai arredar o pé de nenhum direito. Deixamos este recado pra este governo que está aí. E a gente continuará marchando até que todas nós sejamos livres!”
* Com colaboração de Renata Garcia, do Coletivo de Comunicação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Instituto Padre Ezequiel Ramin (RO)