Nesta entrevista, conversamos com Maria Madalena de Medeiros, que faz parte da coordenação colegiada do Centro de Ação Cultural (CENTRAC), que compartilha os avanços e desafios de um projeto inovador de reúso de águas cinzas por dupla filtração. Essa tecnologia social, desenvolvida junto a diversos parceiros com a coordenação de WTT, busca não apenas o reaproveitamento da água residuária na região do Semiárido, mas também contribui para a produção de alimentos agroecológicos e garante segurança sanitária para quem faz o manejo do sistema.
Madalena destaca como essa iniciativa integra pesquisa e ação em um processo de PesquisAção, combinando saberes acadêmicos, técnicos e das famílias agricultoras, promovendo um intercâmbio de conhecimentos. O papel das mulheres no manejo da tecnologia também é ressaltado na conversa. Especialmente no contexto agroecológico, o manejo das tecnologias sociais ocorre majoritariamente nos quintais, espaços tradicionalmente geridos por mulheres, que exercem um papel central na preservação da agrobiodiversidade e da produção da segurança alimentar e nutricional. Desafios como a escalabilidade também ganham espaço nessa conversa, que ocorre no marco de encerramento da etapa de monitoramento dos 9 sistemas-piloto implementados em residências na Paraíba.
No que consiste o trabalho do CENTRAC de forma geral?
O CENTRAC nasceu em 1987, no contexto da redemocratização do país e trabalhando com diversas atividades de caráter político-educativo e organizativo, principalmente no âmbito da mobilização, estruturação e fortalecimento de sindicatos urbanos e rurais, associações de bairro e movimentos sociais diversos no município de Campina Grande – PB. Trabalhávamos com formação voltadas à difusão e popularização dos novos direitos de cidadania, especialmente no que diz respeito à participação popular no processo de elaboração e de fiscalização das Leis Orçamentárias, e à assessoria e formação de representantes da sociedade civil para a participação qualificada nos espaços de definição das políticas públicas, como Conselhos e Conferências. Hoje o CENTRAC trabalha com cinco áreas estratégicas: agroecologia, soberania alimentar e nutricional, economia solidária, convivência com o semiárido e enfrentamento às mudanças climáticas. O trabalho com as tecnologias sociais começou em 2010 a partir da implementação das tecnologias de acesso à água de beber e produção de alimentos e das demais estratégias de convivência com o semiárido e da produção agroecológica de alimentos.
Qual é o diferencial dessa tecnologia de dupla filtração que está sendo executada no projeto junto ao INSA, a outras organizações, às famílias e à WTT?
Essa é uma tecnologia de reaproveitamento, mas, ao mesmo tempo, também é uma tecnologia de saneamento básico. Considero que seja até uma das tecnologias de enfrentamento às crises climáticas, porque, atualmente, no contexto do semiárido, não é possível mais pensar em não fazer o reaproveitamento de águas residuárias. Esse reuso da água em um contexto de crises climáticas e convivência com o semiárido é fundamental. A pesquisa tem mostrado isso, tem oportunizado esse desenvolvimento às famílias e às instituições. Temos aqui no projeto uma ação muito importante dos intercâmbios para trocas de conhecimentos e saberes. É um intercâmbio que acontece envolvendo a equipe técnica das instituições e as famílias agricultoras. A partir desses intercâmbios e do trabalho em rede, a gente troca conhecimentos.
Essa é uma tecnologia de saneamento básico que promove a coleta das águas residuais, tratamento e reutilização, o que melhora as condições sociais, ambientais e de saúde no espaço dos quintais agroecológicos. Após o processo de tratamento a água do reuso está apta a ser usada na irrigação para produção segura de frutíferas, forrageiras e plantas nativas. Além disso, a água após o reuso e tratamento apresenta nutrientes como nitrogênio, fósforo, potássio, cálcio entre outros, essenciais à produção vegetal. A pesquisa tem mostrado isso, tem ainda oportunizado a troca de conhecimento e saberes entre as famílias agricultoras, equipe técnica, as instituições envolvidas e as redes.
Qual é o momento atual do projeto e quais conquistas você destaca desse percurso até aqui, já que encerramos a fase de monitoramento?
Nós acreditamos que esse é um momento muito importante do projeto, porque já não dizemos “eu acho”. Fazemos afirmações “com base na pesquisação”. Não é uma pesquisa de gabinete de laboratório. É algo maior e que une instituições de ensino, de ciência, órgãos públicos, famílias agricultoras, equipes técnicas e organizações não governamentais. Nesse processo, de pesquisação, a gente respalda tecnicamente nossa atuação coletiva é válida a tecnologia. A grande conquista é o reuso da água tratada que passa a gerar renda para as famílias envolvidas, produção de alimentos com segurança sanitária e cuidado com o meio ambiente e com as pessoas.
Qual é o papel das mulheres nesse contexto do uso da tecnologia de reúso de águas cinza por dupla filtração?
As mulheres desempenham um papel fundamental nesse contexto, já que a coleta, tratamento e reutilização da água acontece no quintal agroecológico, espaço de gestão, autonomia, produção de alimentos, segurança alimentar e nutricional e geração de renda das mulheres e jovens. Como trata-se de um espaço no qual as mulheres têm autonomia e fazem a gestão, elas passam a ter papel estratégico no manejo dos diversos componentes do sistema de reuso, e no seu próprio sucesso, contribuindo com o saneamento, a produção de alimentos e a prestação de um serviço ambiental.
Porque o reaproveitamento da água é diretamente direcionado para a produção agroecológica da família?
Esse sistema, assim como outras tecnologias sociais, se encontram no quintal da casa. Como o quintal é caracterizado por uma grande diversidade e formado pelos subsistemas: pomar, hortas, plantas medicinais e criação animal que desempenham importante papel na produção de alimentos agroecológicos é politicamente estratégico que a água de reuso após o tratamento tenha um fim nobre e seja utilizada para produção de alimentos agroecológicos.
Como está sendo de forma geral o trabalho de acompanhamento e as impressões?
Estamos trabalhando com 3 famílias e temos uma sistemática de acompanhamento delas. Estamos há 6 meses realizando coleta quinzenal da água nos reúsos para monitoramento das características físico químico e biológica da água de reuso. Mensalmente monitoramos os produtos utilizados na residência para: tomar banho e lavar mãos e rostos na pia do banheiro; lavar pratos e outros utensílios de cozinha; lavar roupas e a forma como se dá a divisão do trabalho e a segurança sanitária do manejo. Nesse período observamos que, quando a família faz o manejo dos diversos componentes do sistema correto e com frequência, a tecnologia funciona muito bem. Se houver alguma negligência no manejo, isso acaba sendo refletido nas análises e na visita técnica. Para aplicação em escala, essa tecnologia ainda depende do manejo das famílias.
Qual é o desafio de dar escala a essa tecnologia?
O desafio é envolver toda a família, para que todas as pessoas da casa estejam comprometidas com a realização do manejo correto. Por isso, precisamos de formação e sensibilização para que as famílias consigam assumir de forma permanente o manejo, independente das organizações. É algo possível, mas que demanda o envolvimento de toda família, passa educação ambiental pelo debate da justa divisão do trabalho doméstico e envolve muitas perspectivas e parâmetros.
Foto à esquerda: Madalena de Medeiros (foto: Eixo Educação e Comunicação do Irpaa/Caio Barbosa/SECOM-SEAPAC)
Fotos na entrevista (Divulgação CENTRAC):
Integrantes das famílias fazem última coleta do monitoramento
Familias acompanhadas pelo CENTRAC no projeto
Entrevista publicada pela https://wttventures.net/