Por Beatriz Gomes Cornachin*
O primeiro debate com candidatos para ocupar o Executivo do país teve como um dos temas centrais a fome e assuntos relacionados, como os auxílios objetivando mitigá-la, e também o agronegócio. Em um primeiro momento, já fica evidente como o tema abre possibilidades para uma abordagem mais ampla que se conecta essencialmente com outros tópicos. Ocorre de tal forma pois a fome não é um problema a ser encarado a partir de uma única perspectiva. Compreender a fome enquanto fenômeno econômico e social pressupõe a compreensão de uma série de fatores que levam à sua produção. Entretanto, compreender a fome enquanto manifestação da impossibilidade de se alimentar pressupõe algo muito mais simples e ao mesmo tempo desesperador: a incerteza da próxima refeição ou ainda a certeza de não ter o que comer.
O aumento da fome no país, como evidenciado pelo 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, com 33 milhões de pessoas passando fome, bem como o retorno do Brasil para o Mapa da Fome, presente no último relatório SOFI da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), correspondem ao retorno da temática para o debate político de maneira mais evidente. Da mesma forma, compreender a questão alimentar em sua complexidade constitui tarefa trabalhosa e imprescindível. Trabalho realizado pelo “Atlas das situações alimentares no Brasil: a disponibilidade domiciliar de alimentos e a fome no Brasil contemporâneo”, elaborado por José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, Mateus de Almeida Prado Sampaio, Daniel Henrique Bandoni e Luiza Lima Silva de Carli, pela Editora Universidade São Francisco.
Sem dúvida, os méritos do Atlas são diversos, desde a preocupação didática ao expor os métodos de elaboração dos gráficos e mapas, assim como a diferenciação e classificação utilizada pelo IBGE enquanto fonte do material, as classificações e metodologia da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), a classificação NOVA e o Guia Alimentar da População Brasileira. Da mesma forma, a abordagem das especificidades regionais e de classes de rendimentos configuram cuidados importantes que colaboram para compreensão da complexidade da questão alimentar do país, assim como a preocupação com a dinâmica demográfica brasileira para evidenciar os dados relativos e absolutos. Tais características e informações principais também são destacadas pela resenha feita por Livia Cangiano Antipon, no acervo online do Le Monde Diplomatique.
Entretanto, além dos méritos evidenciados, os parágrafos que seguem tem por objetivo destacar trechos que evidenciam a importância do debate alimentar, especialmente no momento em que está latente a disputa de tal questão pelo momento político eleitoral do país. O Atlas se insere como uma ferramenta de compreensão que não deve ecoar apenas no debate acadêmico-científico.
Dentre informações fundamentais, podemos encontrar a média de despesas destinadas à alimentação conforme o nível de rendimento e região. Enquanto domicílios com maior renda destinam maiores valores para a obtenção de alimentos ainda que represente uma proporção menor em comparação ao total dos rendimentos, domicílios com menor renda comprometem uma parte maior dos ganhos, ainda que o valor gasto seja muito menor. No caso, no período de 2017-18, domicílios com rendimentos de até dois salários-mínimos, destinaram em média R$329,00, correspondendo a 22% dos rendimentos. Já os domicílios com orçamento familiar acima de 25 salários-mínimos, R$2.601,00, comprometendo 7,6% dos seus rendimentos. Já a média nacional de despesas com a alimentação foi de R$658,00. Entre as diferentes regiões, Norte e Nordeste apresentaram maior comprometimento da renda para aquisição de alimentos.
O Atlas também revela que existem grupos de alimentos cujo consumo apresenta maiores variações atreladas à renda e outros à região. Por exemplo, as frutas, carnes bovinas, ovos e panificados apresentam maior variação levando em consideração os rendimentos, enquanto o consumo de farinha e féculas, feijão, massas e aves apresentam maior variação dependendo da região.
Já para arroz, açúcares e doces, tanto a região quanto os rendimentos colocam-se como fatores de peso para o consumo. De maneira geral, ainda que os ultraprocessados tenham ganhado maior participação no consumo da sociedade brasileira (12,6% para 18,4% entre 2002-2018 no total de calorias), os alimentos in natura ou minimamente processados seguem com maior participação. Entretanto, quanto maior o rendimento, maior o consumo destes. As regiões Sul e Sudeste apresentam maior consumo de itens ultraprocessados. Abaixo o gráfico que evidencia como os diferentes alimentos têm seu consumo afetado de acordo com a localização ou renda:
Um ponto fundamental presente no Atlas é o resgate do histórico de criação da Escala Brasileira de Segurança Alimentar (EBIA), que evidencia a disputa acerca do termo fome e sua substituição por termos como “segurança” ou “insegurança alimentar”. No caso, o Atlas sustenta a importância de uma “contrarrevisão” acerca dos termos para que se utilize o termo fome, uma vez que a sua não utilização é indicativo justamente da disputa política em seu entorno. Além disso, é oportuno replicar parte do trecho que contém a justificativa para tal substituição: “Resgatamos assim uma terminologia que tem como fundamento uma definição socialmente reconhecida do fenômeno da fome e que comunica claramente a quantidade de domicílios em situação de fome e risco de fome”.
A proposta do Atlas, em comparação à primeira escala elaborada nos Estados Unidos, é a de retomar o termo fome é utilizá-lo de maneira mais ampla desde o que seria considerado como insegurança alimentar leve. Com isso, levando em consideração a Escala Brasileira, a substituição ocorreria da seguinte forma:
-em segurança alimentar – sem fome e risco de fome
-insegurança alimentar leve – risco de fome
-insegurança alimentar moderada e grave – fome moderada e grave.
Com isso, o Atlas enquanto produção científica se insere em um contexto político no qual fica cada vez mais evidente a necessidade fundamental de abordar a fome justamente por sua raiz. A opção política e científica de tratar a fome enquanto tal, a fim de aproximar o objeto científico da sua manifestação política e dos sujeitos que são suas vítimas, coloca-se de extrema importância em um momento no qual a questão alimentar e seus desdobramentos aparecem nos debates enquanto tentativas de mobilizar o tema para diferentes agendas, especialmente para aquelas que sempre se colocaram de maneira antagônica frente políticas públicas de combate à fome.
Dentre os temas que versam sobre a questão alimentar, o papel do campo também esteve presente. Uma das disputas consiste justamente na caracterização do agronegócio. Outra delas, mais evidente no debate do último domingo, 28, consiste na ideia de auxílio à família do campo. Talvez aqui seja interessante primeiro afirmar que existem diferenças de grande magnitude entre o agronegócio e a “família do campo”. E, sendo assim, questionar: se houve tanto benefício para a “família do campo”, o que justifica os residentes do meio rural serem os que mais passam fome proporcionalmente? O gráfico retirado do Atlas colabora para que tal dado seja visualizado de maneira muito enfática:
Um dos dados evidenciados pelo Atlas consiste no fato de que arroz e feijão são centrais para a população brasileira que está marcada pela fome ou risco de fome (36,7% em 2017-2018), ainda que, de forma geral, o consumo de arroz tenha apresentado decréscimo. Com tal cenário, desconsiderando a possibilidade de aumento de produtividade por terreno, como achar justificável o aumento de áreas destinadas para produção de itens de exportação e diminuição de áreas para produção de alimentos de consumo interno, como arroz e feijão?
Se observarmos os dados do documento “Projeções do Agronegócio Brasil 2019/20 a 2029/30 Projeções de Longo Prazo”, publicado em 2020 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Secretaria de Política Agrícola, disponível no link abaixo, podemos observar tal tendência:
Área plantada – mil hectares
A comparação entre os diferentes itens não tem por objetivo reduzir a discussão da questão alimentar à uma solução única acerca da prioridade do que se planta, pois trata-se de algo com escopo multidimensional, especialmente levando em consideração a complexidade das situações alimentares do país, como evidenciado pelo Atlas. A ideia de compará-los e expor no texto presente surgiu posterior evento “A construção da fome no Brasil” na última sexta-feira (26), na Unicamp, no qual um agricultor familiar, Gilmar Mauro, expôs justamente tais dados para evidenciar uma das nuances do problema agroalimentar no país.
Além do agricultor, outros pesquisadores também estiveram presentes e em dado momento foi criticada a perspectiva da gestão da fome, não sob a possibilidade de erradicá-la, mas de no máximo mitigá-la ou melhor, de administrá-la, compreendendo isso enquanto parte de um projeto político. Tal gestão e disputa de narrativas ficou (ainda mais) evidente com a abordagem do último debate de presidenciáveis e provavelmente seguirá em uma crescente, especialmente levando em consideração a importância que o agronegócio tem para o momento político atual e a tentativa de tensionar os candidatos para que se posicionem acerca do projeto alimentar que o setor tem para o Brasil frente ao crescimento da fome.
Diante de tal cenário, coloca-se como fundamental ferramentas que nos salvem das mentiras propagadas acerca de algo tão delicado quanto a questão alimentar. O Atlas das Situações Alimentares no Brasil se insere no escopo de tais ferramentas que se propõem inclusive a facilitar a interpretação dos dados para que o efeito multiplicador se potencialize. Entendendo a fome enquanto projeto político, espera-se que a ciência, atrelada à responsabilidade social que lhe cabe, colabore para desnudar fatos que possíveis mitos venham encobrir.
*Beatriz Gomes Cornachin é doutoranda em Economia Política Mundial pela UFABC
(Universidade Federal do ABC) com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Membro do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB (fomeri.org).
Edição: Cida ALves
Fonte: Brasil de Fato PB